Na casa da servidora pública Higina Amoedo, o cumprimento das leis trabalhistas não perde ponto. Tanto que ela chegou a instalar o equipamento eletrônico para fazer o registro das horas trabalhadas. A carga horária é de 8h por dia, com 1h de descanso. “Adotei o ponto eletrônico em casa porque encaro o serviço doméstico como uma profissão em que os direitos e deveres precisam ser respeitados. A funcionária doméstica também tem um lar, filhos, marido, mãe, e precisa dos seus momentos para a realização dos próprios afazeres da vida pessoal. É importante ter o diálogo e fazer tudo conforme a lei”, afirma.
Os empregadores estão mais cautelosos? Na comparação entre os anos de 2019 e 2020, o número de processos registrados no Tribunal Regional do Trabalho 5ª Região (TRT-5), relacionados a domésticas, teve queda de 28,5%, passando de 1.938 para 1.385. Até março desse ano, foram 373 registros, segundo dados TRT-5. Porém, os casos mais recorrentes são os de rescisão do contrato e não, necessariamente, sobre a rotina de trabalho.
“Não tem chegado processos novos pertinentes ao trabalho doméstico, ainda que depois da Reforma Trabalhista, os casos já vinham em um volume menor. Entretanto, a pandemia reduziu ainda mais, sobretudo, por conta do aumento do desemprego e o medo de entrar com um processo trabalhista, até porque os custos são altos. É muita cautela com relação a tudo”, analisa a juíza do trabalho lotada na 33ª Vara do Trabalho de Salvador (TRT -5ª Região), Silvia Teixeira do Vale.
Higina é um exemplo de que as patroas e patrões ‘do bem’ existem e fazem a diferença, durante a pandemia. Isso significa cumprir com o essencial, mas também agir com solidariedade e senso coletivo, sem perdas salariais para a doméstica, como acrescenta Silvia:
“É necessário que o empregador proteja a si e também o empregado, porque isso vai passar e quando acontecer, todos têm que estar bem. O próprio trânsito no transporte é um fator de risco à saúde na pandemia. Uma alternativa possível é fazer um esquema de revezamento sem impacto no salário, com a prestação do serviço em três ou dois dias”, destaca.
Para não ficar sem contar com o serviço da doméstica e, ao mesmo tempo, garantir a proteção, o diretor do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos (Sindomésticos-Bahia) e integrante da diretoria da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Francisco Xavier, pontua que a assinatura da Carteira de Trabalho é prioridade. A estimativa da entidade é que o estado tenha uma média de 500 mil trabalhadoras domésticas e, em Salvador e Região Metropolitana, cerca de 150 mil.
“Dessas 500 mil, infelizmente, não temos nem 20% formalizadas. É a mão de obra de uma doméstica que permite que as demais profissionais possam sair para o trabalho. No final, o patrão abate 7% do salário da trabalhadora e mais 6% do vale-transporte. Os encargos somados não chegam a R$ 200. Ela precisa que o empregador recolha os encargos garantidos por lei”.
A filósofa Adalgisa Fonseca é uma dessas patroas que optaram pela redução da jornada, sem comprometer o salário da doméstica. Núbia trabalha há 18 anos na casa de Adalgisa.
“A única mudança que fizemos foi a redução para duas a três vezes na semana, mantendo o bom salário, por acharmos mais prudente e correto. O deslocamento de Núbia é feito por um motorista de aplicativo que pagamos mensalmente, a fim de diminuir os riscos de contágio. Graças à Deus, ninguém da nossa família pegou o vírus ou adoeceu”.
Acordos possíveis
Outro cuidado é conversar, buscar um acordo mútuo, sem imposições ou postura taxativa, conforme assegura o presidente do Instituto Doméstica Legal, Mário Avelino. Na página da instituição há um e-book gratuito disponível com alguns conselhos que podem ajudar nessa relação. “A decisão é conjunta, sobretudo, na hora de definir folgas. Qualquer mudança é por acordo”, reforça.
Uma das principais dúvidas que surgiram nesse momento de pandemia é, justamente, com relação à permanência no trabalho para evitar exposição. Dorme no serviço ou não? O advogado trabalhista e professor da Uniruy, Fábio Santos, esclarece que nenhum profissional é obrigado a aceitar essa proposta. Mas, caso a doméstica aceite, ela não recebe nada a mais por isso, a não ser que fique à disposição da casa.
O especialista aponta outras soluções: “Fica difícil configurar que a pessoa está ali só para dormir. Não é uma obrigação legal, porém, avalie a possibilidade de buscar e levar a trabalhadora de volta em casa, ou custear o Uber. O momento requer uma tolerância, uma parcimônia, principalmente se sua casa não tem um cômodo para abrigar a doméstica com conforto”.
É justamente isso que o empresário Felipe Freitas tem feito. Sua casa fica no bairro da Graça, mas Marli mora no Rio Vermelho.
“É uma pessoa de total confiança da família e a gente se preocupa muito com o bem-estar dela. Todos os dias em que ela trabalha eu ou meu pai, vamos buscá-la. Sempre pagamos integral, independente das horas trabalhadas. Está tudo sendo feito da melhor forma possível”, diz
Quem também não conseguiu abrir mão do serviço doméstico foi a enfermeira Maria Manoela Nogueira, que tem adotado estratégia parecida. O marido dela sai do Cabula até o Caminho de Areia para levar e trazer Cláudia sem expor ela em um coletivo. “Ela cuida da nossa casa e das nossas filhas. Sendo assim, cuidar da saúde dela é cuidar de nós mesmos”.
Mais que um contrato
No caso da empreendedora da SBsapateiras, Sandra Barros, a primeira atitude foi dar férias a Maria e antecipar o benefício desse ano. No retorno, ela contratou um motorista para fazer o transporte. Mesmo com todas as medidas de segurança, Francisco apresentou sintomas de covid, o que fez com que Sandra custeasse os testes, tanto o dele, quanto o de Maria.
“Quando o motorista testou positivo, fiz exames em todos da casa. Não tivemos covid, nem Maria. Já ele foi afastado, mas continuei ajudando no tratamento”.
Nessas situações, o advogado trabalhista do Pedreira Franco Advogados Associados, J. Arthur Pedreira Franco Filho, explica que o empregado está coberto pelos 15 dias de atestado sem o desconto no rendimento. “Se a contaminação ocorreu no trabalho, o empregado doméstico tem direito ao ressarcimento das despesas médicas e hospitalares e, além disso, dependendo do caso, poderá fazer jus a indenização por dano moral e material”, alerta.
Maria começou a ir e voltar de ônibus para o trabalho, no Costa Azul, mas com o horário flexibilizado, para que não pegue o coletivo nos horários de pico. “Ficamos 60 dias sem Maria. Se eu já respeitava e valorizava o trabalho dela, passei a valorizar um milhão de vezes mais. Assim que ela conclui as tarefas, pode ir embora sem precisar cumprir às 8h diárias previstas na CLT”, diz Sandra. “É um cuidado que traz uma segurança para a gente”, complementa Maria, que mora em Amaralina.
Agir certo não é só uma questão de contrato ou bondade, mas de cuidado com o outro, como ressalta o advogado J. Arthur Pedreira Franco Filho. “É tudo muito novo. O que não podemos é nos aproveitar do momento para errarmos de propósito. Em caso de dúvida, não deixe de consultar o sindicato de classe ou um profissional do direito. Entendo como ‘patrão do bem’, o empregador colaborativo, que não se limita só a cumprir as obrigações contratuais, mas a fazer a diferença”, completa.